e as várias cores de luz e sombra na dança que abre as cortinas

e as várias cores de luz e sombra na dança que abre as cortinas
e ajoelhar-me para ficar à mesma altura do afaga-céus de um bago de cerejas só pela textura
e abraçar um gato com as mãos bem abertas para que o amor não fuja
e olhar o retrovisor de um carro e ver mil imagens de vida disparadas por segundo e sorrir por isso parecer um espelho sincero e mergulhável para a constante das nossas metamorfoses
e tremer muito no frio e ainda assim tocar as saliências de beleza feitas pelo nevoeiro
e olhar a minha cara num reflexo e rir-me pelas caretas possíveis nas rugas rir-me por ser possível além de por dentro o corpo rodear-se de água sem ficar molhado rir-me por amar-me muito e não ter medo de o dizer até cantar para mim mesmo porque a natureza nunca faz pouco de nós
e ver pássaros em forma de ranhura na estrada e onde pousaram prolongar-lhes um ninho através de fruta
entre-lábios
e afagar o dorso de um cavalo o queixo de um gato a superfície do mar o exterior das pétalas os pormenores da pele de quem se ama, e sorrir muito por não querer metáforas que caibam para essas perfeições incorruptíveis
e dar banho a quem se ama e sentir rios cristalinos por cada ângulo do grande corpo sensorial, precisamente por ser quem se ama
e acariciar o próprio pé direito com o próprio pé esquerdo enquanto se descansa
e coçar a barba com a língua
e poder apreciar o cheiro intenso do próprio suor (comum a todos na glândula, apenas não tanto no seu gradiente de família)
e no meio claro dalguma solidão saboreada sozinho ou em companhia, ler um livro de poemas em voz alta a conversar os versos doutros comigo mesmo e gostar de poder gostar disso mesmo
e na mesma solidão clara (solidão igualmente algo comum à glândula da humanidade mas não comum no seu gradiente de família) poder gostar de abrir um piano e desconhecedor de pautas e escalas poder dançar em cada tecla no improviso criançado da descoberta dos dedos a segurar o prazer nas orelhas, mesmo nas desafinações, mesmo nos momentos indeléveis de silêncio que servem só para criar espaços entre a ampliação das intensidades
e gostar de correr a galope com uma criança no meu dorso a fazer de animal que é o mesmo que dizer ser o presente e correr pelo jardim afora sem amanhã que é o mesmo que dizer pelo coração adentro agora agora agora
e deitar-me aconchegado numa praia toda
doce, a praia toda
por se estar abraçado a quem se ama e nos ama de volta
e trepar as árvores e abraçar um tronco agradecendo a presença a raiz os oxigénios e as telas pilares dos poemas
e colocar dois grandes búzios no lugar dos ouvidos e nesses fones de sentida-geração poder fechar os olhos e abri-los risonhos porque nenhuma voz responde, nem a interior, mas só corpo só espírito
e fazer um desenho animado com folhas de outono e brincar com a primavera por termos chegado mais cedo
e utilizar os lápis de cera só pelo cheiro bom
e pôr protetor solar no inverno da pele para que o cheiro deslumbrado do verão da infância não nos abandone
e gostar do som crocante que as maçãs fazem ao ser trincadas e as ameixas só pelo rasgar da pele
e ouvir uma música que se gosta muito e abanar o corpo todo em sintonia porque ela está a compor-nos também a nós, inclusive em música
e fazer amor com quem se ama e agradecer às galáxias todas ao tempo todo o tempo todo
e amar o sabor do grande real disso poder incluir numa só substância partilhada todas as pequenas grandes coisas de que se gosta e fala nos poemas numa só substância partilhada
e olhar olhos nos olhos frente a frente as essências bonitas e dizer-lhes
- raios te partam
para todo o lado bom
por não caberes
Tal Como és
em poema nenhum

Diogo Costa Leal
inédito



Comentários