Ode a minha mãe


Ode a minha mãe

nenhum poema nas mãos do oceano aberto. 
perto dos seus dedos só o esquecimento das margens
do prazer e da paz. 
aquele que sonha terá água doce ou água salgada dentro das lágrimas bailarinas dos seus olhos fechados? aquele que sonha saberá soletrar ódio no sangue? e se souber, como amará ele a violência se o primeiro sonho - como o amor - ama a comunhão prática da infância táctil?
- ¿mãe, os dálmatas são cães com sarampo
ou desenhos que ladram?
- ¿mãe, aquela menina é castanha porque é feita de chocolate?
-¿mãe, chamas-te mãe porque mãe é a palavra mais próxima de mão, a primeira mão que nos amparou o primeiro susto incrível do real?
- mãe, quem sonha é filho de toda a gente.

nenhum poema nas mãos do oceano aberto das mães.
Perto dos seus dedos só os rolos da paz e do calor a fotografar o sangue dos anjos nas varandas sublimes dos colos.

mãe, inspiro o sol nas coisas evidentes.
existe realmente o erro, mãe? o erro-cruz? como poderá ser real o erro, se tudo é pegada de água sobre os caminhos percorridos entre as pedras?

mãe, dói-me o corpo todo. estou doente. estou doente ou sonho que estou doente, mãe? o que é estar doente, mãe? se eu pensar agora nos pilares de pétalas que vindimo nos teus olhos, continuarei doente? o calor exagerado do corpo saberá que o amor dançado amando ser torto irá amar o calor exagerado no dorso das dores.

a ordem tem fim, mãe.
a ordem tem o fim que é a morte.
não há morte.

mãe
há uma planície de gargalhadas sobre o coração desta lembrança contigo como uma árvore alta a cintilar o oxigénio que gostas de prolongar.

mãe
tenho sorrisos que provam
que nunca vais morrer

nenhum poema cabe derradeiramente nas mãos que se amam
e que só querem as mãos nas mãos
não a tara perdida das palavras
que serão sempre trocadas só por recordações
e nunca por mãos doces.

contra isso
escrevo isto mãe
contra isso
amo esta limitação cantante
que invento em lâmpadas reminiscentes contra
a flutuação benigna da solidão
contra isso
escrevo isto mãe
contra isso
escrevo
para retocar todas as mãos que me salvaram, mãe
todas as mãos que invento e todas as mãos que existem
todas as mãos que construíram o soalho sólido
deste coração anfitrião, secreto
mas aberto, se for sereno
o bater à sua porta.

mãe
tenho sorrisos que provam
que nunca vais morrer

serás sempre
o banco de trás
que sempre vou olhar
no retrovisor da esperança.

o único retrovisor aliás
que avisa mesmo
contra os atropelamentos.

Diogo Costa Leal
in Voz Alta [urutau, 2018]


Elisabetta Sirani, 1663

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